a-hora-da-estrela
há 57 anos, o artista plástico brasileiro hélio oiticica nos apresentou sua bandeira-poema “seja marginal, seja herói”, palavra de ordem para os que lutaram contra a ditadura militar. nela se encontra uma representação de alcir figueira da silva, que, "ao se sentir alcançado pela polícia depois de assaltar um banco ao meio-dia, jogou fora seu roubo e suicidou-se."

oiticica se refere a alcir como o anti-herói anônimo, que contrasta com o herói anti-herói cara de cavalo (manoel moreira), o criminoso mais procurado do brasil por alguns meses. cara de cavalo era amigo pessoal de oiticica e entrou para o crime ainda criança, vendendo drogas na central do brasil.
em agosto de 1964, a mando de um bicheiro, o detetive le cocq e um grupo de policiais armaram uma emboscada a cara de cavalo, que conseguiu fugir e balear fatalmente le cocq. prontamente, foi iniciada uma caçada ao criminoso, culminando no surgimento de organizações de policiais como a scuderie le cocq, influência direta dos esquadrões da morte e das milícias contemporâneas. cara de cavalo eventualmente foi encontrado e morto pela scuderie le cocq com 100 tiros disparados.
no anonimato ou com a cara estampada em jornais, ambos são sintomas de uma sociedade adoecida que provoca revoltas viscerais. para oiticica, “o problema do marginal seria o estágio mais constantemente encontrado e primário, o da denúncia pelo comportamento cotidiano”.
ao homenagear o marginal, oiticica não pretende eximi-lo de seus atos, mas denunciar uma sociedade que produz esses eventos: “sei que de certo modo foi ele próprio o construtor de seu fim, o principal responsável pelos seus atos. o que quero mostrar, que originou a razão de ser de uma homenagem, é a maneira pela qual essa sociedade castrou toda possibilidade da sua sobrevivência, como se fora ela uma lepra, um mal incurável. imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais degradantes princípios, como é a nossa, colaboraram para torná-lo o símbolo daquele que deve morrer”.
deve morrer, mesmo após pena cumprida e busca pela redenção, como mostra racionais mcs em “homem na estrada”, um relato de uma cena comum na periferia. a música conta a história de um ex-presidiário que tenta reconstruir sua vida em uma favela na zona sul de são paulo.
assim como nosso herói anti-herói, o homem na estrada é vítima de um esquadrão da morte, morto por um grupo de policiais que o acusaram de um crime que não cometeu, sem chance de defesa ou julgamento. ao fim da canção, descobrimos que também virou manchete e deixou um filho órfão, possivelmente “mais um pretinho na febem”.
(descrição de jornal)
homem mulato aparentando entre vinte e cinco e trinta anos
é encontrado morto na estrada do m’boi mirim sem número
tudo indica ter sido acerto de contas entre quadrilhas rivais
segundo a polícia, a vítima tinha “vasta ficha criminal”
alguns anos depois de cara de cavalo, o anti-herói anônimo se faz presente novamente em uma das músicas mais famosas do país, “construção”, de chico buarque. a música, que repassa o último dia de um trabalhador da construção civil, mostra um retrato dos modos de vida miseráveis produzidos no capitalismo periférico.
a canção, com seu jogo de palavras, levanta questões essenciais como o trabalho alienado (“subiu a construção como se fosse máquina”) e a ideologia (“morreu na contramão atrapalhando o tráfego”).
me admira muito estes versos finais:
por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
o tema do marginal ou anti-herói anônimo também perpassa uma das principais obras de clarice lispector: “a hora da estrela”. nela, clarice parece tentar imaginar uma realidade possível de si mesma, tão marginalizada que não teria consciência de sua própria existência.
para isso, clarice cria um falso autor, “rodrigo s. m.”, que executa um fluxo de pensamento muito bem construído e se encontra na desamparadora missão de contar a história de uma “miserável nordestina”. sobre o mote “enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever”, ele se engaja em uma introdução extensa sobre a história de macabéa, questionando a si mesmo várias vezes e destacando a complexidade da tarefa.
nossa anti-heroína anônima é macabéa, alagoana pobre que migra ao rio de janeiro após perder sua tia, sua única rede de apoio. a nordestina trabalha como datilógrafa no centro do rio, ganhando apenas o suficiente para não morrer de fome.
durante a história, macabéa vive um quase-amor com olímpico, que a troca por sua colega de trabalho sem titubear. impressionável, vai a uma cartomante por recomendação de sua amiga e finalmente obtém consciência de sua situação e poder de pensar sobre o futuro.
na visão da cartomante, macabéa conhecerá um jovem estrangeiro endinheirado que mudará sua vida. ela sai correndo da casa, eufórica e esperançosa sobre o futuro, e é atropelada por um playboy dirigindo uma mercedes-benz.
agonizando na rua, com todos olhando, a heroína anônima encontra sua libertação: “pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando, como no canto coral, se ouvem agudos sibilantes”.
a obra, com raízes no existencialismo, realiza um exercício único de construção de personagens intimamente ligados e que se confundem em diversos momentos. clarice parece usar o autor para expressar a angústia ou náusea existencial no lugar da própria personagem, já que ela própria não tem consciência de sua realidade. não há espaço para ela se perguntar “quem sou eu?”.
o autor nos conta que a história é “acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dentes”, sobretudo porque o próprio autor está no desamparo existencial diante da liberdade de escrever o futuro de macabéa. a nordestina, que nunca vomitou, após suas últimas palavras “quanto ao futuro”, “sente um fundo enjoo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. estrela de mil pontas (...) ela vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!”.
assim como macabéa não podia recorrer a Deus, pois não o conhecia, o existencialismo é construído por “um esforço para extrair todas as consequências de um posicionamento ateu coerente”, onde “o homem precisa encontrar-se ele próprio e convencer-se de que nada poderá salva-lo de si mesmo, mesmo que houvesse uma prova incontestável de Deus”, como levanta jean-paul sartre.
ele tem a tarefa de lembrar o homem de que “não há outro legislador senão ele mesmo”, então estamos condenados à liberdade de construir a essência e a condição humana, já que “a existência precede a essência”. apesar de um aparente determinismo, nossos anti-heróis marginais também são responsáveis por seus respectivos destinos.
é dessa liberdade e, por consequência, responsabilidade que aparece a náusea ou dor de dente, sobretudo porque não é possível não escolher, já que não escolher, por si só, é uma escolha. e não escolhemos no vácuo: “eu sou obrigado a escolher uma atitude e, de qualquer modo, sou responsável por uma escolha que, ao me engajar, engaja também a humanidade inteira”.