brasil-caipira
o obelisco “diamante dos bandeirantes” me causa um certo desconforto toda vez que chego ao quilômetro zero da rodovia que liga são paulo a campinas. talvez seja a constatação de que levei mais de uma hora nas marginais e ainda tenho cem quilômetros até meu destino. talvez sejam suas arestas agressivas e a altura imponente que me incomodam.

obelisco diamante dos bandeirantes / as três faces do cristal
talvez o incômodo esteja na própria rodovia e no nome que carrega, como tantas outras que cruzamos sem pensar. quem foram os bandeirantes? quem foi anhanguera? fernão dias? raposo tavares? anchieta?
apesar de tudo, a burguesia paulista do século vinte foi suficientemente digna para homenagear os próprios bandidos. não eram tão submissos como os de hoje, que saúdam a bandeira americana e defendem a primeira emenda dos estragos unidos.
we the caipiras, mestiços descendentes dos paulistas, não podemos esquecer nossos bandidos. mas também não devemos cair no ufanismo requentado de washington luís, que, assim como tarcísio, também foi o carioca miliciano encarregado de são paulo exatamente cem anos atrás. “questão social é caso de polícia” há muito tempo.
a história dessas rodovias começa nos séculos dezesseis e dezessete, com os bandeirantes. a capitania de são vicente, a mais pobre do território colonial, era comandada pelos homens bons que dirigiam a câmara e organizavam as bandeiras. ali, profundas transformações moldaram até hoje nossa forma de ocupar e explorar o espaço.
o contraste era nítido. de um lado, as capitanias do nordeste, inseridas no comércio transatlântico de açúcar e escravizados africanos. de outro, as capitanias do sudeste, empobrecidas, mergulhadas em guerras, saques e na captura de indígenas para venda. cerca de trezentos mil indígenas, vindos principalmente de missões jesuíticas, foram vendidos a senhores de engenho do nordeste para compor a força de trabalho colonial.
a expansão dos bandeirantes e o povoamento do interior se apoiaram em uma instituição indígena típica da américa do sul, descrita por darcy ribeiro como cunhadismo. na prática tradicional, oferecia-se uma moça como esposa ao estrangeiro e, ao aceitá-la, ele passava a fazer parte do grupo, criando laços de parentesco com todos. esse vínculo era chamado de temericó. há relatos de europeus com mais de oitenta temericó, o que lhes dava acesso a uma multidão de filhos e cunhados a seu serviço. esse foi o principal motor do povoamento do brasil no período, responsável por gerar uma vasta população mestiça em torno desses homens.
a família tradicional paulista, caipira ou bandeirante, era organizada de forma patricêntrica e poligínica, comandada por um chefe branco, português, e sustentada por suas mulheres, suas proles mestiças e seus cunhados indígenas. às mulheres cabiam as tarefas domésticas: o plantio, a colheita, a alimentação e o transporte. aos homens indígenas, liderados pelo paulista, cabiam a caça e a guerra, alternando entre longos períodos de vigília e campanhas violentas.
joão ramalho, considerado o pai dos paulistas, chegou a ter a sua disposição um exército de cinco mil indígenas, composto por filhos, cunhados e descendentes, frutos diretamente de violência sexual. quando quilombos se levantavam em revolta, eram os paulistas que eram chamados. voltavam com milhares de orelhas de negros mortos como prova de bravura.
com o tempo, o casamento religioso foi eventualmente imposto aos caudilhos paulistas, consolidando a ideia de mãe e filhos legítimos. ainda assim, os antigos arranjos persistiram por muito tempo. o próprio governador geral da colônia dizia, admirado: “tem tantos filhos, netos, bisnetos e descendentes dele, que não ouso dizer a vossa alteza. não tem cãs na cabeça, nem no rosto, e anda nove léguas a pé antes de jantar.” um sigma que tomava banho no escuro, no tietê.
as missões jesuíticas eram alvos fáceis para os paulistas. compostas por milhares de indígenas sedentarizados e adaptados ao trabalho agrícola, já haviam perdido a estrutura e a autonomia de seus povos originários. missões inteiras foram destruídas e saqueadas, de minas gerais ao mato grosso e rio grande do sul.

intervenção de MIA no pateo do collegio, 2018. "olhai por nois"
para os jesuítas da companhia de jesus, os índios eram almas a serem salvas. podiam sobreviver, desde que abandonassem as heresias e se juntassem ao rebanho da igreja, como operários da empresa colonial. para os colonos, eram menos que humanos, considerados bicho, recomendava-se a escravidão. o conflito entre jesuítas e colonos era constante, principalmente na capitania paulista, que carecia de recursos para africanos escravizados.
apesar do discurso de redenção, na prática, as missões serviram como centros de domesticação de indígenas, que mais tarde seriam incorporados à força de trabalho colonial. aqueles que não morreram nos combates ou nas epidemias trazidas pelo europeu, é claro.
darcy, em o povo brasileiro, explica que o brasil caipira resulta de duas regressões. do lado português, perdeu a vida comunitária da vila, a disciplina patriarcal das sociedades agrárias, o arado, o trigo, o azeite e o vinho. do lado indígena, perdeu a autonomia da aldeia igualitária, o senso de solidariedade familiar, o trabalho coletivo, o artesanato e o ritmo ancestral da vida.
sob o asfalto liso e o concreto imponente dos obeliscos, estão enterradas milhares de almas subjugadas em nome do progresso.

protesto de jul/2021 na estátua de borba gato, que levou à prisão de paulo galo