shanzhai

K2A000384N000000000PAA.png

a pintura acima se chama “adeus a um amigo em feng-cheng”, de wang fu (1363–1416). ela retrata uma bela paisagem montanhosa na china, onde podemos observar, em sua seção inferior, um grupo de pessoas reunidas em uma espécie de gazebo de frente para o rio. ao lado, vemos um barco atracado na costa, aguardando a partida.

o grupo em questão é formado por oficiais chineses, também conhecidos como mandarins, que tinham a tradição de se reunir em um local paisagístico para celebrar a despedida de um amigo que fora transferido para outra localidade. era uma cena comum, tendo em vista que eles não podiam exercer a função em um mesmo local por mais de três anos.

destacam-se na imagem os diversos selos vermelhos e escritos na parte superior. dentre eles, temos o poema:

mesmo que eu seja apenas um visitante neste lugar,
acompanharei meu amigo em seu caminho de volta para casa.
o céu outonal brilha sobre o rio, tornando-o repentinamente largo.
um pequeno barco, leve como uma folha, aguarda na costa.
as bolsas de viagem estão cheias de poemas e ervas medicinais.
o eremita da montanha dos nove dragões, wang fu, pintou este quadro para yen ju e adicionou uma inscrição.

nesta ocasião, cada um dos amigos utilizou um selo para acrescentar um poema à imagem. hu yan também deixa seu selo e poema:

no rio de wu, já é outono sombrio.
acompanho e me despeço de meu amigo no rio jiang.
combinamos de nos reencontrar quando as primeiras geadas se instalarem.
juntos queremos admirar a lua sobre feng-cheng.

aqui, a pintura e a poesia são atos sociais e coletivos, servindo como uma expressão desses eventos. wang da também faz sua contribuição:

o rio de cor verde se estende, e os lírios de amêndoa florescem em ambas as margens.
o ilustre retorna de longe pela primeira vez.
da cidade natal, moradores e velhos amigos vêm cumprimentá-lo.
a aldeia é deixada deserta, há uma multidão por toda parte na floresta.

na pintura chinesa, os selos e inscrições fazem parte da composição da imagem, diferente de quando um artista ocidental assina sua obra. inclusive, elas são projetadas desde o início para alocar as inscrições posteriores.

ao deixar espaços vazios nas pinturas, as obras convidam o observador a inserir sua inscrição e participar desse espaço criativo. o pintor chinês não faz sua inscrição para delimitar sua presença e originalidade, mas sim para marcar um traço que deve ser continuado.

byung-chul han, em “shanzhai”, traça o contraste entre a obra de wang fu e a pintura ocidental de johann van eyck, “o casal arnolfini”. o segundo quadro, datado de época próxima à de fu (1432), retrata um casamento e é famoso por uma série de fatores, sobretudo pela incomum inscrição do autor, escondida no meio da tela: “johann van eyck esteve aqui”. na europa, assinaturas no interior de obras só começaram a ser utilizadas a partir do século xvi.

The_Arnolfini_portrait_(1434).jpg

as inscrições autorais ocidentais servem como um selo temporal para a obra, proibindo intervenções. qualquer alteração na pintura ou tentativa de reprodução seria considerada uma violação da autenticidade dela.

os selos chineses, em contraste, abrem um espaço comunicativo e convidam à colaboração. “a ideia do original chinês não é determinada por uma criação única, mas por um processo infindável, não por uma identidade final, mas por transformação constante”, diz han. o pensamento do oriente tem início na desconstrução (shanzhai).

nossos ideais de originalidade remontam a platão. para ele, o belo é imutável e só se assemelha a si próprio, não permitindo qualquer desvio. nesta concepção, qualquer reprodução destrói a identidade e a pureza do belo original.

o traço principal do pensamento chinês não é o ser único e uniforme, mas o processo multiforme, transformador, fluido. as obras são grandes espaços vazios em construção, sempre sendo preenchidos por novos conteúdos. “quanto maior o mestre, mais vazia é sua obra.”

para além da colaboração, a cópia também é uma prática essencial na cultura chinesa. o aprendizado se dá a partir da cópia, e ela representa um grande sinal de respeito ao seu mestre: copiar é louvar.

o culto ocidental à originalidade e à genialidade empurra para segundo plano essa prática que é fundamental. “a criação não é um acontecimento pontual, mas um processo lento que requer um longo e intenso engajamento com o que já foi, a fim de criar a partir dele. criação é, nesse sentido, primariamente o ato de criar. o construto do original escamoteia o que já foi, o anterior a partir do qual ele é criado”, diz han.

844f0a2c3722c4bb59185a86a6fd965f.jpg
abaporu latex volumen, de rodolpho parigi.

shanzhai é o neologismo chinês para fake, que tem se tornado bastante comum nos últimos anos, tendo em vista o forte desenvolvimento industrial na china durante as décadas de 1990 e 2000. da china, vemos emergir milhares de cópias de produtos e marcas ocidentais que, na prática, são produzidos em locais geograficamente próximos e com componentes semelhantes, às vezes até mais sofisticados.

inicialmente se referindo apenas para celulares chineses que imitavam modelos de marcas como nokia e samsung, o termo passou a ter um sentido mais amplo, compreendendo outros produtos como filmes, livros, celebridades, políticos. o movimento shanzhai não trata simplesmente de falsificações, mas de adaptação e flexibilidade. muitas vezes os celulares shanzhai possuíam componentes e softwares equivalentes, com funções diferenciais: todos lembramos dos celulares com 4 chips e tv digital!

“o movimento shanzhai desconstrói a ideia de criação como creatio ex nihilo”, isto é, desconstrói o mito de que é possível criar a partir do nada. existe um aspecto fortemente subversivo na cultura shanzhai, representando o culto do processo frente à essência, fruto do espírito chinês milenar. longe de ser uma prática de falsificação, carrega em si uma crítica à fixação pela originalidade e propõe uma outra lógica: a da repetição criativa, da cópia como forma de aprendizado e reverência, e da obra como espaço aberto à colaboração.

WhatsApp Image 2025-09-21 at 22.54.13.jpeg

meu-jardim